Parte 1
Olhos abertos, vidrados no teto: o descanso já não me alcança mais; sonambulismo constante e frenético, noites insones, despertas, sem paz... Tento dormir, me contorço sem fim, mas o sono fica sempre mais longe; me desespero com tamanha agonia, procuro a calma mas é o frenesi que me contamina. Perdido na neblina de só ver mundo real, já não tenho harmonia, pois sem sonho nada é igual; passo as horas contemplando o passar da existência, sem nenhum repouso. Ando pela casa, passo as mãos na cabeça e só de aflição encheria baldes, tentando encontrar a calma que – cadê? – foi-se embora – ora, meu rapaz, são três e meia da madrugada e o bar da esquina continua com suas mesas empoeiradas e copos gordurosos esperando o próximo que não consegue dormir enchê-los de uísque barato com água até que desmaie de bêbado e fique pleno em sua tão almejada serenidade, estirado na calçada em algum beco por aí.
É isso mesmo que vou fazer, como esse quarto me nauseia – precisava mesmo dar uma saída e agora, na rua, faço parte do breu ao invés de apenas observá-lo; e é claro que quando via o sol respingar sua última gota de claridade sobre o meu lado da Terra, a última gota de claridade que eu tinha dentro de mim se esvaía também por completo, encharcando meu ser com a mais tenebrosa escuridão de ter a certeza que não conseguiria pregar os olhos de forma alguma nas próximas infelizes horas que eu tinha pela frente. O bar já pude ver: está com um fraco movimento, mas ainda vive; aqueles agonizantes que não perdem a oportunidade de ficar até as últimas conseqüências, tendo que sair carregados pra fora tão entorpecidos que inconscientes. Escolhi uma mesa num canto e pedi aquilo mesmo que a parte Mefistófeles da mente me aconselhou: uísque barato, com gelo em vez de água (não sou acostumado ao calor do Inferno, será que lá ninguém bebe cerveja? Já desconfiei mesmo que fosse coisa dos anjos), o importante é que sequei uns três copos já nos primeiros minutos que entrei, tal estado me encontrava. O garçom cochichava algo com alguém na mesa apontando de certo pra mim, de certo perguntando quem eu era e querendo dizer com isso se eu tinha ou não dinheiro pra pagar a conta; mas, que merda, eu tinha, eu tinha! Deve ser pra mim que ele está apontando, o desgraçado... Levantei o copo pra pedir mais um e ele veio, olhando com severidade. Aproximou-se firme e foi dizer algo, eu já pressentindo que iria querer me expulsar do bar e já esperando pra partir pra cima dele quando me disse calmamente “Fechamos em uma hora.”, e pegou meu copo pra enchê-lo. “Traz algo mais forte então”, eu respondi, ao que um bebum desdentado sentado num canto ali perto soltou uma risada rouca e estridente, “Lembra qual foi a última vez que alguém disse isso, Tom?”, e o garçom, sem rir: “Não conheço ninguém que viu aquele homem virando a dose de Passamal se esquecendo da cena.”. “Uma dose apenas?” eu disse; e ele “Sim. Vai querer ou posso voltar a trazer seu uísque com gelo de bixa?”. Aquilo me deixou desconcertado e, redemoinhadas as idéias no vento do pensamento, disse a ele que sim, ia querer experimentar essa tal Passamal, e que trouxesse uma dose dupla, por favor. O bebum soltou uma gargalhada que o fez quase cair da cadeira. O garçom sorriu um sarcástico riso de triunfo, pensando “Um maluco bêbado a menos no mundo, afinal”, e saiu com meu copo pra buscar a dose dupla. Senti espasmos estomacais antecipatórios de quando já se sente algo queimando a barriga antes mesmo de beber só de olhar a garrafa escondida no armário, sem rótulo, que Tom agora abria e enchia o copo afastando o rosto para o outro lado, como se tivesse um cheiro exageradamente forte; aproximou-se e na metade do caminho já pude sentir o fragor quente de cachaça, aumentando até que o copo estivesse na minha frente, com as únicas seis pessoas que estavam no bar me olhando com pena, e como se esperassem algo incrível prestes a acontecer. Devolvi o olhar, peguei o copo e sequei de uma só talagada. Parecia que o cheiro era bem mais forte que o gosto, mas acreditem: essa foi a última sensação que me lembro ter tido naquela noite.
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Abriu os olhos.
A visão embaçada rodava num giroleio trôpego e indeciso; flashes da madrugada se exibiam tremulantes para logo em seguida virar fumaça e desaparecer no ar. Demorou um pouco até que recobrasse os sentidos, mas as idéias continuavam embaralhadas: nada pensava, lembrar impossível e quem dera simplesmente deixar de existir pra mais não ter que suportar aquela que, já nos primeiros segundos, era a rebordose mais violenta de toda a sua vida. Percebeu que estava no fim da madrugada e, tomado de uma súbita consciência espacial, viu que havia dormido numa calçada de pedra na posição mais desconfortável possível, o que lhe proporcionava insuportáveis dores nas costas, ombros, pescoço, rosto... Rosto? Passando a mão sentiu calombos de inchaço por todo o corpo; ficou a par de um horrível gosto de sangue adormecido na boca e, cuspindo, um dos dentes saltou pra fora, de onde já devia estar amolecido por alguma pancada. Tentou levantar, mas – porra, que merda é essa aqui no chão? Foi o que pensei quando vi o que pareciam fiapos de madeira na camisa toda rasgada, vindos com certeza daqueles encostos quebrados do que algum dia fora uma cadeira de bar. Dizem que com álcool as pessoas simplesmente fazem as coisas que sentem vontade de fazer, coisas que – na grande maioria das vezes – nunca fariam sóbrias; com Passamal as pessoas faziam o que queriam ao pé da letra. Foi a conclusão à qual cheguei antes do torvelinho se desgrenhar e, girando, esmufaçar realidade em memórias que voltavam, flashes de lembranças virando passado imaginado como se – num átimo me lembrei de tudo o que se passou naquela fatídica madrugada.